Cinco horas da manhã e nem bem havia cerrado as pálpebras e lá se vai Pedro para longe do colchão duro, mas quente.
Ainda sente o perfume distante de uma cachaça amarga, tomada ao som de conversas atravessadas, em meio a rodadas de palitos na noite anterior, na birosca do Simão.
- Diabo de galo miserável.
A leiteira só esquenta água. Do lado de lá tem chá, presunto e muito queijo com pão quentinho, do lado de cá, o pão ainda dorme, há pouco pó para coar e o que sobra é fé.
Veste um pouco de calça e enfia as butina. O candidato do boné já retornou ao anonimato. O da camisa promete.
Não reclama da vida, nem da mulher, muito menos dos filhos. Não têm culpa de nada. Dormem os inocentes. Um beijo na mulher, que deixou a marmita no forno, com a sobra da janta que sobrara do almoço. Ela nunca saberá de Leonor. Beija os filhos, cada qual à sua maneira, mas com afeto indistinto. Não esquece um só dia.
- Se eu pego esse galo desgraçado, acabo com ele.
Cinco e meia, tá na hora de tomar rumo.
Desce a rua, atravessa a passarela, dobra a esquina, pula o bêbado, leva a marmita morna, espera o sinal fechar, desvia do carro, aperta o passo, não vai perder a hora.
Tira do bolso duas notas e uma prata, espera na fila, troca por bilhete, passa a catraca, espera na fila, desce a escada rolante, vira à direita, entra na fila, espera na fila, empurra a fila, a fila o empurra, perde a condução. Espera de novo, lá vem a condução, entra na marra, se segura como pode, se espreme, se enrosca, se entorta, segura a marmita, olha a curva! Olha o freio! Mais vinte paradas e será nossa vez! Olha o breque! Lá se vai a marmita ao chão. Ficam o arroz o feijão e o ovo estrelado, mas rolam as lingüiças, que não vão muito longe. São pinçadas de volta, assopradas e bem guardadas. Não vai deixar cair de novo.
Chega ao destino. É empurrado para fora do vagão, entra na fila, sobe a escada rolante, dobra à esquerda, passa na catraca, ganha a rua, de frente à igreja, com o polegar direito, parte a cara em quatro, o peito em quatro, segue adiante, chega ao canteiro. Não esquece o ponto.
Qual é o andar de Pedro? Apressado, mete a mão na massa. Qual é o andar de Pedro? Põe o capacete e sobe a escada devagar. Passa o segundo, o terceiro. O quarto trem três quartos, o menor maior que seu barraco, o maior é o sonho de toda uma vida. Continua a subir. Qual era mesmo o andar de Pedro? Pára no sexto. Não há mais andar.
A visibilidade é boa, a poluição ainda não é sufocante, as buzinas dos automóveis vão aos poucos substituindo as piadas de passarinhos. Não tem graça nenhuma, é piada cada vez mais rara. Não vai rir de nada.
- Ainda mato aquele galo filho da puta.
É bom de colher, sapeca a massa, pega a lajota, uma a uma, vai sumindo a paisagem. Aparece a cachaça não se sabe de onde. É hora do almoço. Toma um trago, faz cara feia. Pega a marmita e se vira para o canto. É bom de colher. Não quer companhia.
De volta à labuta, ainda zonzo da pestana breve. Cambaleia por entre as lajotas e meias paredes. Fabrica um quadrado vazio. Aos poucos vai se erguendo o labirinto e o homem lá, se encarcerando. Cadê as piadas? Cadê a luz? Não ouve as buzinas.
O galo canta fora de hora em cima do telhado. O sol fica vermelho.
No canteiro é hora de trocar de andar. Não quer falar. Vai até o fim da laje. Olha para baixo e vê os transeuntes a esquivarem-se uns dos outros, escolhe o momento de calmaria. Não hesita.
Qual é o andar de Pedro? Pedro não tem andar. É pássaro, mas não voa. Não é rei, mas sente-se príncipe. De pernas para o ar, não quer voltar.
Pressente o momento em que todos o cercarão estupefatos. Indignar-se-ão por ele interromper seus dias com sua vida banal. Não tem esse direito.
Lembra-se do galo, da mulher, das crianças, de Leonor. Esfrega os olhos. As lágrimas molham o cimento. O cimento arranha seus olhos. Seus olhos vêem o sol vermelho. Não os fechará.
Ônibus, carros, motos, pedestres. Todos param. O mundo finalmente parou para ver Pedro. A cidade não é toda de pedra.
segunda-feira, agosto 02, 2010
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Um comentário:
Jogo sublime de repetições sem informações recorrentes. Pedra com sentimento. Sentimento acimentado.
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