domingo, julho 06, 2008

feia escura e morta

o céu negro de brigadeiro contempla singelo o mundo. e com carinho lhe cobre com sua negra mortalha e o ilumina com suas estrelas sorridentes
muito abaixo
num pequeno beco entre duas ruas desertas
um saco plástico
negro como a noite, a escuridão, e a morte
ele brilha fugazmente sob o luar com com belos nuances e tons de branco reflete fiel e disconexamente a luz das estrelas, que são suas guias, as únicas e caladas testemunhas daquele triste fato
por dentre muitos desses sacos, que sobre o frio e estéril concreto repousam em seu descanço
está pousado wachintom
o jovem garoto está magro, seu olhos estão secos, e em sua boca, junto à várias escarras de infecções, pousa um sorriso pleno
o sorriso pleno, sorriso pleno daquele que é amado, aquele que é feliz, aquele que tem tudo que sempre quis, e mais nada deseja, sorriso de satisfação, felicidade e plenitude
em suma, o sorriso que muitos poucos podem ter, que só os têm no momento junto à morte
calmamente, fria, e sorrateiramente, o hálito quente da vida escoa de seus pulmões, corre pelo chão sem caminho, e sem destino, perdido num universo q eu não é dele, até que é devorado pelos ratos que por ele ansiavam desesperadamente
de seus magros dedos da mão direita cai um pequeno saquinho transparente, com um liquido amarelado e grudento, o único amor daquele garoto, o único motivo dele existir, e ter vivido até agora, seu caminho, o caminho que ele escolheu, o caminho mais fácil, o único caminho feliz
os ratos andam, e encontram o garoto, e por cima dele perambulam, procuram um lugar para morder, e seguir sua vida. mas até os ratos têm nobreza, e respeitam um cadáver jovem em seus primeiros momentos, além do mais, a carne só tem o melhor gosto após 3 dias
se vão na sua luta por uma vida, apenas isso, apenas uma, e apenas vida
do outro lado dos sacos, um casal e namorados anda pela rua, felizes, seu amor contagia, seu amor de carinhos, atenção, dedicação e felicidade, o típico amor que emigra ao nascer do sol
as pequenas folhas de grama no concreto não sabem, se sorriem e contemplam o amor, ou se se contentam em ser as únicas nesse mundo à guardar luto pelo jovem wachintom.
mas, eis que, não por milagre, desgraça, ou destino, mas apenas por coincidência, o brinco da jovem que na parede mais próxima segura ao seu amor, cai, e rola para os sacos
ela o procura, e encontra wachinton, com sua pele negra como muitos, sofrida como tantos outros, e horrível como poucos. olhando em seus olhos, com sua mão esticada parecendo uma garra, e pedindo por carinho
a moça, em sua ignorância juvenil, grita aterrorizada, e corre, seguida de seu consorte, abandonando o pobre e solitário defunto
ao longe, um grande urubu se alimenta no grande lixão da zona norte da cidade, ele ouve o grito, e sente em seu coração o terror, e logo sabe que ali está a morte. e levanta vôo buscar os restos deixados pela bela dama
ele pousa sobre a cama de sacos
olha o garoto com seus velhos olhos, e diz:
acabou garoto, não adianta mais ficar ai abaixado e chorando
não adianta, procurar por seus saquinho, você não pode tocá-lo, nem sentir seu efeito
o garoto diz:
calaboca, me deixa em paz, eu preciso de mais, preciso do meu amor, preciso sentir de novo, preciso sentir a felicidade em mim de novo, preciso de quem me ama e me entende. preciso pra saber de novo que os homens não são nada além de cachorros, que só precisam do seu saquinho que ama
o urubu baixa seu bico, suspira, e fala:
garoto, você não entende, isso não é amor, é cola, ela não te faz feliz, só te dá uma sensação boa, e te faz esquecer como a vida é dura. isso é para os fracos, eu conheci muitos garotos como você, e você é o único que não morreu de tiro. agora me ouça bem, você está morto, não pode cheirar, não pode fugir, não pode dormir, ou sonhar, a vida é o aqui e o agora, e aquilo que você vestia, onde você vivia, agora é minha comida da próxima semana inteira, agora saia daqui, e me deixe comer sem seus resmungos, pois logo outros maiores e mais jovens virão, e eu poderei ficar com fome
o garoto começou à chorar, o urubu pousou sobre o seu peito; onde um coração ainda insistia em bater fracamente, à despeito da morte de todo o resto; e bicou seus olhos que ao vazio pediam alento. o garoto saiu correndo, frio, vazio, e sem forma, aos soluços tropeçou e nas sombras se perdeu


(inspirado tropicália, de caetano veloso ( http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/44785/ ))

Nenhum comentário: