domingo, janeiro 27, 2008

Contato

Subi os degraus com impulsos acostumados do corpo, deixando antes uma velhinha típica passar à minha frente. Ela tinha uma espécie de xale sobre o vestido florido, que lhe davam um aspecto digno de senhora idosa de classe média. Via-se bem que se arrumara, pusera brincos de bolinhas achatadas verdes e sandálias de pequeno salto brancas e limpas, que pareciam ou eram pouco usadas, e combinavam estranhamente com seus também brancos cabelos presos em coque. Deu-me um largo sorriso quando a deixei passar e subiu com uma destreza incondizente com seus cabelos grisalhos, mas aceitável por seu alegre vestido e sua pele viçosa. Porém não havia mais lugares nos bancos especiais destinados a velhinhas e grávidas e portadores de Síndrome de Down e todos esses que aparecem comportados, distantes e bonzinhos nas novelas politicamente corretas. Por isso a senhorinha passou pela catraca, desembolsando dois e cinquenta pela passagem - o que vi e não vi, pois estava ocupada olhando fixamente um ponto qualquer na janela. Parei de olhá-lo para também pagar minha passagem. Olhava agora os passageiros ao fundo, que olhavam a velhinha se aproximar como se o próprio Destino. Sentou-se. Atravessei o corredor cambaleante com os mesmos olhares direcionados antes à senhora voltados para mim. Tive vontade de ser pequenininha ou de ter Down para ser invisível. Poucos se conheciam ou conversavam. Somente um casal discutia sobre um armário das Casas Bahia e dois garotos ao fundo riam depois de falar palavrões um pro outro. Mesmo assim, havia uma agitação dos passageiros todos, liam revistas fazendo barulho, abriam bolsas, falavam nos celulares, alternadamente, ou ficavam com olhares e pescoços de pombo, a cabeça virando, os olhos fixando-se num ponto, a cabeça novamente virando, os olhos em outro ponto, ..., assim por diante. Eu também tinha um grande olhar de pombo, e já me preparava para tomar o lugar de uma mulher que mexera em sua bolsa, mexendo na minha, quando a senhora disse a meia voz, como se diz em lugares públicos sem se ter um interlocutor definido:
-Puxa, é uma falta de respeito eu ter que pagar pra sentar! Não é?
[E, nessa pergunta final, dirigia-se a mim com a cabeça, meio sem jeito. Talvez houvesse encontrado uma cumplicidade ou facilidade no meu jeito; às vezes me sinto como um velho padre de paróquia, mas sem infligir temor nos outros.]
-É sim...
[respondi com um meneio leve de cabeça; Não me interessava muito falar com ela. Estava ocupada agora com a contade de pegar meu livro na bolsa e lê-lo sem desviar os olhos até o fim do meu destino. Mas a senhora continuou:]
-É que não saio muito, não costumo pegar ônibus sempre...
-Ah, sim... Olha, quando for assim, a senhora deve pedir pro motrista parar, e é só entrar pela portinha de trás; aqui também tem cadeiras reservadas...
[Tentei parecer delicada, mas me sentia um pouco constrangida.]
-Aahh, brigada, minha filha...
-Nada!
-...Sabe? Você se parece muito com minha neta... Parece sim! Ela é bonita e nova assim também.
[Os olhos dela brilharam.]
- Ah, é? Brigada...
- Sabe? Eu gostava muito de conversar com ela, mas ela agora está em São Paulo, estudando...
[Seu rosto, por um átimo, se abriu num abismo triste, disse 'estudando' como um lamento que fosse também uma censura.]
-Ah, sim...E a senhora mora com quem?
[Ela suspirou.]
-Moro sozinha, minha filha. Desde que meu marido morreu
[parou como se quisesse continuar, esperando uma resposta.]
-mmm, que pena...
[Nunca sei o que dizer nessas horas, e sempre acabo dizendo algo que me parece idiota. Talvez tudo seja idiota perto da morte. Talvez tudo seja idiota.]
- Mas já faz muito tempo...
[Abanou os pensamentos com a mão e sorriu novamente.]
Nessa altura, alguns "pombos" nos fixavam os olhos, isso me deixava um pouco nervosa, me fazendo mexer na bolsa de vez em quando. Talvez nossa conversa fosse uma ameaça, provava que os outros também poderiam sair das carapaças e conversar entre si. Isso devia deixá-los assustados, assim como me deixava nervosa sentir que eu perturbava o estranho equilíbrio de ações e vozes desconjuntadas do ônibus.
- A senhora é bem bonita, viu? nunca pensou em encontrar alguém de novo?
[Risos largos dela.]
-Nãão...Já estou velha pra essas coisas...
[Calou-se, fazendo um não com a cabeça, sorrindo romântica. Vi castelos no ar em seu redor.]
- Verdade! Queria ser como a senhora se tivesse sua idade!
[ Não era bem verdade, sempre imaginei morrer antes dos 40.]
- Brigada, você é uma mocinha muito gentil.
(...)
A conversa seguiu nesses termos afáveis e foi se aprofundando. Fiquei sabendo de sua filha, morava em Minas mas sempre costumava visitá-la, isso quando a casa era ainda cheia, quando o marido era vivo e os dois filhos ainda não haviam partido para outras cidades. Justamente a filha dessa filha era a neta que se parecia comigo. Entendi, então, o peso das palavras trocadas naquele ônibus com aquela senhora, como eram importantes para ela, saída de uma toca em busca de alguém da mesma espécie. Quando percebi a importãncia do momento, me senti um pouco culpada por não sentir nele a mesma importância. Essa culpa me deixou, ou me obrigou a parecer, mais solícita e interessada na conversa. Ela deve ter percebido isso, pois nessa hora me passou o telefone de sua casa, junto um convite para ir visitá-la logo que ligasse. "Você vai ver minhas plantinhas!" Ou talvez tenha percebido meus olhares para a janela, dizendo que logo eu teria que descer, e me deu seu número com receio de retornar ao silêncio; seu telefone como uma luz no fim do lusco-fusco a que se acostumara na casa vazia; fézinha. Peguei o papel e o guardei no bolso interno da bolsa, já lotado de papéis de bala, tíquetes, cupons, outros telefones e até um chiclete mastigado envolto num pedaço de uma prova da faculdade. Estava com pressa, os movéis baratos sinalizavam a proximidade da minha parada, deixando-me naquela agitação superior de quem se sente em casa. Disse enfim àquela senhora que eu tinha que ir, dei-lhe dois beijos nas bochechas, que mal e mal consegui acertar naquele balanceio, puxei a cordinha para dar o sinal e desci naquela esquina tão minha conhecida. Depois fiz coisas simples que sempre faço: passar na locadora, cumprimentar o bêbado do bar, pagar minhas contas atrasadas... E cheguei em casa. Pensava no dia, naquela velhinha doce e só, deseperada e quieta até o desespero levá-la a procurar umas palavras amigas. Quem sabe eu me tornasse uma velhinha igual e, como ela, encontrasse uma pessoa como eu, displicente, que me escutaria por um misto de polidez, vontade e dó? Talvez eu a seja neste momento, desmascarada a juventude, os afazeres com ares importantes, as pessoas em redor, estou tão só quanto ela. Nisso eu pensava enquanto vasculhava a barafunda de papeizinhos à procura do dela. Nada. Seu telefone havia sumido, se extraviado enquanto eu voltava à minha vida de sempre, como se nunca houvesse existido. Senti-me mal. Uma estranha sensação de ter escolhido aquela perda, uma culpa. Mas um alívio também. Uma pontada na cabeça me dizia que se o houvesse encontrado, jamais ligaria.

2 comentários:

Guilan disse...

estou em êxtase. li tudo e foi muito bom.

é de certo modo triste também seu conto. sinto uma dó da velhinha

mas mesmo assim, não teria ligado, sei lá? vergonha.

minha vó é igual a essa velhinha do texto

sinto-me culpado porque ela sempre me pede pra ir tocar modinhas de viola pra ela, e eu respondo que não há tempo.

era o que eu precisava para ir amanhã mesmo (quem sabe?)

ítalo puccini disse...

belo texto.
sensível, retrato de "n" vidas invisíveis ao nosso alcance. depararmo-nos com uma, mesmo que através da escrita, comove-nos; a demonstração de nosso sentimento de pena para conosco mesmo.

abraços,
Ítalo.