Eu respiro forte e caricaturalmente, ainda assim o ar parece não entrar. Na lembrança tenho o vidro quebrado do perfume, o cheiro que me ficou à náusea, tudo entrecortado, justaposto, como num filme de baixo orçamento e grande pretensão. Ela não estava lá, de novo na rua quando cheguei, me perguntando com a resposta pronta se ela viria me receber. A água do chuveiro me molha o corpo, gradativamente me afunda nas lembranças daquele dia. Chovia. Madalena costumava me olhar fundo nos olhos de embriaguez, e eu passei a chamar aquilo de ‘o meu fim-do-mundo’. Mais tarde, ela veio morar comigo, entrou no meu apartamento e na minha vida do mesmo jeito, como se sempre estivera lá, tão óbvia e natural, Madalena era o abajur da sala, iluminava sutilmente meu mundo. Subia minhas calças pelas manhãs, se mostrava aguardente melíflua nessas horas, nos antes e depois. Toda noite saía, enquanto eu me afundava nas páginas de mil romances-naufrágios, para trabalhar em um bar, atendendo bêbados, casais, grupos. Mas ela se estendia, acabando em outro bar mais decrépito, Bêbada, talvez por vingança, pra se ver como a servida, trocar de papel. Ela tinha disso, era dualista. Já eu, era múltiplo, e éramos um só. Nos confundíamos de tal maneira que cheguei a querer engoli-la, me enfiar todo nela, vê-la por dentro, dissecá-la. Pedi-lhe, insisti, supliquei-lhe; eu precisava daquilo pra escrever, finalmente o romance estava deslanchando, mas os arranhões, as mordidas não eram mais motor suficiente. Madalena cedeu, de início excitada, depois estranhou, resignou-se, entristeceu. Cada jorro de líquido vermelho dos ombros, das coxas dela era um tesão frenético em mim. Naqueles dias escrevi como um insano, tinha a impressão de ver a tinta no papel vermelha. Não. Serei honesto; cheguei a vê-la, sim, rubra. Eu escrevia o sangue de Madalena, suas veias, seus intestinos. Ela, mais marcada, tremia ao voltar, quando voltava. Em mim, então, na centésima oitava página, veio o desespero, uma ânsia de uma certeza terrível subiu à garganta. Vomitei. Parei de escrever, desesperado. Por que cada letra para viver no papel tinha de sugar a vida da mulher que eu amava? Tornei-me sombrio, pálido, quase-morto, jogando-me exaustivamente ao trabalho naquele escritoriozinho de merda, ao qual nunca antes dedicara esforço. Esforço sem ganas, porém; apenas maquinal. Não amava mais, mal comia, dormitava sem sonhos, acordava sem mordidas em Madalena. Ela se desesperou, parou de beber, voltava em ponto para casa, implorou para que eu fosse como antes, para isso se cortava!, se cortou nas coxas, fez sangue verter pelo tapete. Berrou, louca. Foi o dia: ela quebrou o frasco do perfume histérico, o som da quebra e dos gritos, dizendo eu-te-amos enraivecidos, pedindo dó e se enfiando na carne um caco adocicado. Bebo na água do chuveiro o amargo do amor de Madalena. Peguei-lhe os pulsos, sacudi-a, incendiado de medo. Não poderia pedir a ela, contar tudo! A verdade da humanidade na minha mão: Contei-lhe. Ficou mais pálida, mais, era gesso, cal, a morenice esvaiu-se da pele, o tapete era vermelho e moreno sob seus pés. Súbito, vi um lampejo nela, pareceu-me descobrir o sentido da vida, o fim absoluto, um fim-do-mundo que já não era o meu. Entendemo-nos no silêncio; nunca a vira tão mulher. Pegou a faca afiada na cozinha, beijou minha boca e disse, Faz. Das três punhaladas saíram nascentes infinitas, toda a vida Madalena me havia dado para perpetuar nas palavras. Deu por si, senti-a dizê-lo no último som. Seus olhos abertos, fitando a janela, não tive coragem, ou tempo, para fechar. No mesmo dia terminei o último capítulo, sentindo até o último ponto final que a caneta era sua veia pulsante.
terça-feira, outubro 02, 2007
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2 comentários:
Lembrei-me de Dorian Grey, não pelo quadro, mas pela relação escrever-matar.
Uma prosa ao amor efêmero.
Já, eu, lembrei-me de Dorian Gray.
Hahaha... estou somente pentelhando.
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